.no escuro não existO .apagO .luz e imagem é a minha
essênciA .só me é possível a vida em imagens através da luZ .não sou só vidro
com uma fina camada de aço grudado às minhas costas, emoldurado por madeiras
polvilhadas de um ouro velhO .tenho imaterial constituição gerando a minha
extraordinária magiA .todos os espelhos são mágicoS .refletem o inverso, mentem
sobre as formas dos corpos e das faces, enganando-os quanto a idade e a
aparência que têM
.nada que existe, criado, foi pra ser visto, por
isso os espelhos são necessários na sua função de enganaR
Acordo sem
acordar. Entre o sono e a vigília, há apenas forças no meu corpo pra abrir os
olhos e ver, enfrentando-me, outro corpo no espelho da parede em frente à minha
cama. Nele há refletido esse sonolento corpo imóvel, inerte duplo do meu. Carne
branca, pêlos, muitos pêlos, uma mata de pêlos bicolores pelo corpo inteiro. Pretos-e-brancos-brancos-e-pretos. Nos espelhos espalhados pela casa, não quero ver mais o meu rosto com a barba
por fazer. Encaro somente as minhas tatuagens que, mais do que o rosto, revelam
minha verdadeira identidade.
A cada manhã
acordo para seguir o mesmo roteiro há muito por mim escrito. Alongamentos de braços
e dedos, enquanto penso uma contagem de 40 segundos de duração pra cada esticar
dos meus músculos em busca da vida corporal necessária para seguir o meu dia.
Mas hoje não. É domingo. Preguiça até pra me espreguiçar. Não me importa em
nada que dia venha a ser hoje. Em licença médica nenhum dia é útil. É o que o
espelho me faz lembrar, denunciando à minha consciência essas pernas enfaixadas.
Tal Lázaro, ataduras podres silenciam por completo os já inaudíveis sons dos
movimentos das minhas pernas. Ata, amordaça, amarra, imobiliza. Ataduras que
deixam as pernas duras, garantindo-me que eu dure por mais um tempo em pé. Imolo
aos deuses apenas meu sangue.
Arte que
articula os movimentos. Levanto, enfim. Já em vigília, sigo pela casa cumprindo
coisas que se fazem necessárias. Sinto-me vigiado. Há uma presença, além da
minha, pesando o ar desta casa... não me afeta.
Moro só.
Abro
janelas e portas pra sair o cheiro sufocante das fumaças festivas das fogueiras
da noite de São João no nordeste.
Dia
calmo. Sol e chuva se intercalam como se combinassem dividir o mesmo espaço
entre o céu e o solo. A chuva é boa pra uns, o sol pra outros, e assim o dia
fica mais bonito. Também estou mais calmo que nos dias anteriores. A paz me vem
pelos medicamentos, não me lembrando mais das suas idas-e-vindas como condição da
depressão. Apenas lembro, pra começar com coragem meu novo dia, o que pensa de
mim uma amiga... parece um lago quieto.
Vejo hoje tudo pelos olhos da razão e não mais pela violência contida. Sinto a
harmonia em meu universo particular.
Não
mais me masturbo. Libido em baixa. Só tenho sonhos que não se fixam na memória,
mas que ainda me trazem ereção. Minha memória, ou talvez a sua falta, serve
agora somente pra aquietar os dramas.
Enquanto
a chaleira ainda não ferve a água para o ato mecânico e contínuo de passar
café, bebo em jejum um copo de água do filtro e como uma castanha do Pará. E já
sabendo que o dia me acontecerá em ordem, tenho o controle do ritmo de meu
coração e mente. Minhas ações se desencadeiam em arquitetados planos distintos.
Num
dia como hoje, igual à ontem, há pouca coisa a fazer. Um livro pra terminar de
ler, após sete arrastados meses de empréstimo. Pedir o almoço por telefone por
não poder caminhar e sair de casa. Fazer operações bancárias pela internet e,
sem muita paciência, navegar nas redes sociais, sempre off-line, só pelo tempo
necessário para as dores pesarem e o meu corpo pedir descanso.
Embromo
assim o dia com permissivas futilidades. Elas não pesam em minha anestesiada
consciência e me aliviam a lembrança de que preciso escrever o que é preciso.
Este
meu cotidiano é a máscara viva que uso. É o patuá protegendo o que em mim não
quer morrer. Se eu matá-lo, exponho-me a minha própria morte.
Sou
Raí Cordeiro, escritor sem escritos relevantes. Meus documentos trazem outro
nome, bem mais longo e comum, visto haver tantos homônimos.
...vives a vida através do espelho, por nele
refletir as conversas mudas, bocas, caras, roupas adequadas, ensaios de seduçãO
.sexO .pensas que tens algo muito importante pra dizeres aos outros, à
humanidadE .és alguém dentro de uma casa, casulo, fazendo coisas sem
importância, quase quieto, inofensivo, mas atordoando o que há forA
.te mandaram cresceres e foi o que fizeste no
decorrer de um longo tempo, deixando aos poucos de veres o que havia dentro do
teu espelho, quando ainda eras criança, único espaço em que dele te apropriavas
e podias ser lúdicO
Outro dia pra
acordar. Acordo. Hoje o espelho me mostra um dos curativos jazente no frio piso
cerâmico do meu quarto. Mais uma vez postergo os alongamentos dos meus membros
superiores, assim como o banho não tomado ontem, programado pra essa tarde.
Café
feito como repetição da mesma ação cênica dos incontáveis dias anteriores.
Amanhã
a Galega virá. A mulher que faz quinzenalmente a faxina e também as compras da
semana no mercadinho mais próximo. Hoje nada a fazer a não ser deixar o tempo
se cumprir no meu cotidiano. Refazer e refazer os dias sempre iguais.
Só
há em mim a ação de pensar, ou tentar pensar, naquele passado onde penso
existir mais vida. Não encontro passado que valha lembrar. Sem futuro, tornei-me
rei coroado pela solidão de estar aqui e agora. Só existe o agora entre o
passado e o futuro.
Ar
pesando à volta, deixando os meus movimentos mais lentos. Do caos que provoquei
vem outro movimento. Mas não agora, não aqui.
No
almoço, sirvo-me de vinho tinto seco e brindo à vida e à morte como se elas
fossem uma pessoa, única.
Escrevo, então,
para não enlouquecer. O que escrevo me ultrapassa... ultraleve me fará voar com
outras asas, em direção, intenção, ao meu único e perfeito dia. No entanto, enquanto
escrevo e me debato feito lagarta nesta casa, o cotidiano medíocre me conduz ao
dia seguinte.
.sou espelho e mintO .mostro apenas as distorcidas
imagens do que chamas real, a outra verdade revertida pelo reflexo dos teus
contrasteS ?é um sonhO ?o que é sonho e o que é reaL ?o real está no sonhO .o
irreal que o engana, contendo-o em um mundo que se prolifera de coisas e
pessoas dentro dele e ao meu redor, inchandO ?ele existE .os mundos não conseguem viver sem miM .refletindo,
faço crer que as imagens tua, delas e de todos, serem a verdade, única, tendo-a
como sua propriedade exclusivA :deixo a dúvidA ?as imagens existem apenas como
reflexos, sem serem reaiS ?como sabes que as outras pessoas existeM ?serás sÓ .mortos-vivos
sem extrema unçãO .os espelhos quebrados fragmentam os teus pensamentos,
sentimentoS
.tudo que é duplo é apenas um só seR .inversamente
como num espelho que só faz veres as duplicidades dos contrasteS .opostos o bom
e o maU .a parte boa sofre por ser boA .é aquela que busca a felicidadE .não
pode achar, na sua infrutífera procura, o que não existE .desistE .a desilusão
faz com que ela queira ser a parte mÁ .o teu eu bom e o teu eu mau se amam, mas
se rejeitaM .o bom é quem quer matar o maU . aí o bom torna-se maldosO .o mau
só está no seu papel, tornando-se indesejadO .é quem te faz ter pesadelos e te
acorda quando sonha os sonhos de felicidade realizadoS .desejas segregar o eu
mau à margem do convívio humano, condenando-o a estar eternamente preso em uma
ilha solitária de rotas perdidaS
.a meia idade quer tornar os homens adolescenteS .não
é por que chegaste nesta idade da inutilidade economicamente produtiva que
pensas e sentes da mesma forma a solidãO !mesmo com os anestésicos, tens vivo o
tesão no teu corpo, eu vejO .entope-te de remédios que só servem pra embotar
tua alma, volatizar teu vaziO ?o que fazes pra melhorares o gosto da vidA !queres
um corpo colado ao teu, dentro um do outro e não forA !o homem ama o seu próprio paU .o seu
feminino, o eu por ele não reconhecido, é o seu melhor amigO .o feminino no
homem dimensiona a relação do seu macho com a sua fêmeA .é o feminino
inconsciente dele que busca o encontro com o seu masculino, fazendo-o um homem
por completO .inteiro e plenO
Acordo,
como em todas as madrugadas, por pesadelos que minha memória esconde atrás da
sua providencial cortina do esquecimento. Lanço-me da cama ao banheiro e urino
um turvo líquido por demais amarelo-escuro e fedorento. Vou até a cozinha me
arrastando e bebo num só gole um copo cheio de água, ordenhada do filtro de
barro.
Chove.
Não
me olho mais nos espelhos. Cansei de ser Narciso a se enganar ao olhar nas
águas um rosto que nada mais é do que o seu contrário refletido, o avesso. Agora
não mais mantenho a saúde corporal de um jovem e me falta paciência para a
juventude. Estou em idade de buscar o real. O avesso-do-avesso-do-avesso, como
já disse um compositor famoso em sua famosa música. Na verdade, busquei o real por
todas as minhas idades. Desde a não vivenciada infância, busquei as verdades.
Mas as verdades podem não ser reais. Todas as pessoas têm suas próprias
verdades.
Entendi, então,
com a idade avançando, que o real ao qual buscava não é sinônimo de verdade. A
verdade é a vida que cada um acredita ter e viver. O real é outra coisa. É o
que integra o meu mundo interior, tanto quanto consigo ser íntegro. Interagir
com o mundo exterior é outra história. E quando me torno sombra daquelas
pessoas que escolho por admiração, aí sou apenas ação-e-reação-reação-e-ação.
Convivência com o outro é andar na corda bamba. Se quero manter boas as
relações sociais e amorosas tenho que jogar o jogo das previsões do outro
jogador. Supor antecipadamente suas verdadeiras intenções para, nesse espaço
chamado relacionamento, desarmar-lhe o bote que me subjugaria. Mas na espera do
reconhecimento da vitória, quando ela chega, frustra. Não passa apenas de um
tolo xeque-mate. E o sentimento é o de não ser importante. Não sei como e nem
quando me tornaria importante na vida do outro. Outro que não o escolhi e que,
de tantos, nunca o encontrei. É sobre isso que preciso escrever... vida e
morte.
Prefiro, então,
o meu mundo, para não ser preciso utilizar-me de qualquer forma de poder. Minha
realidade, suspeito existir só dentro de mim, indiferente aos outros; aos
outros mundos. Sequer, conheço inteiramente o meu mundo; dois mundos tão
distintos; eu olhando o externo, chamando-o de você; o eu externo a me olhar,
chamando-me de você. Dá a mim a sensação de eu não ser eu e nem ele ser ele.
Sensação de não existirem nem pessoas e coisas e nem de eu estar aqui, vivo. É
tudo um sonho?
No meu universo
solitário invento pessoas irreais, refletidas em um espelho mágico. Um pequeno
universo. Há a teoria dos físicos: o grande Universo é um só e finito; o que
nele vemos contido e nos dá a ideia de infinito é só seu reflexo. Saber que até
mesmo o Universo terá o seu fim, consola a dor que o medo da morte me causa.
Esse Universo, tão misterioso pra humanidade, também tem seus espelhos
refletindo as irreais imagens que enganam: estrelas que já há milhões de anos
deixaram de existir e, ainda assim, mantêm suas cintilâncias. Nossos corpos,
organismos e mentes são réplicas do grande e finito Universo. Sou também seu
reflexo. O que existe nele existe em mim. E saber que até essa Natureza
Universal, criadora e criatura, irá morrer...
Eu já quis
morrer! Mas como os meus pensamentos não seguem em linha reta, agora não estou
mais querendo o que é provável, talvez inevitável: o encontro em um atropelo,
antes da hora e local marcado, com o que me é destinado. O que chamo de duelo
da minha vida com a minha morte, de espíritos desarmados. Sem a contagem de
passos, sem trapaças e sem armas. Nenhuma testemunha, mesmo que haja a
assistência de alguma gente curiosa. A morte não pode ser vista e muito menos
vivida por outros, a não ser pelos dois protagonistas posicionados nessa
encruzilhada dos encontros marcados. Morrer é sair de cena. O último olhar será
para o pedaço do espelho quebrado que irei carregar comigo. Reflexo: vulto que
volta, antes de cair na densa sombra. Ser esquecido. Passar a ser mais outra
estrela morta com a energia da memória durando só por mais um pouco. A morte
desfaz os encantos da vida, em elos e duelos com os espelhos. Aí os pensamentos
ferem. Quebrei-me juntamente com o meu espelho e agora me multiplico como as estrelas
estilhaçadas pelo Universo.
Querer o
suicídio não é necessariamente querer morrer; é querer outra vida diferente.
Vida após o caos.
Não sei se
alguém já disse o que acabo de pensar e dizer. Todos pensam e quase sempre
dizem o que pensam de uma forma ou de outra, já que há tantas formas de
expressão e tantas mentes criativas. Como disse
Aristóteles, o ser se diz de tantas maneiras. É preciso resgatar o valor
das palavras. Até mesmo os que pensam em linha reta têm sempre os seus pensamentos
propensos a se cruzarem com os dos outros. Caminhar em linha reta é pra quem
tem objetivos. Eu não mais os tenho, perdi-me deles. Reafirmo: meus pensamentos
não seguem uma linha reta com medo de serem pegos pelo trem do destino da minha
própria história. A permanente tentativa de me esquivar da vida e da morte,
ambas tão particularmente a mesma entidade. Acumular energia para a fuga é
engordar o corpo e a alma.
Penso nisso
enquanto rodo a colher na xícara, admirando a homogênea tez do café, achando-a hoje
mais preta do que nos outros dias. A sincronia nas danças da minha mão direita,
do rodar da pequena colher e do café a redemoinhar na porcelana esmaltada,
faz-me ver o belo e crer que só ele existe. Para não cair no canto das sereias,
quebro biscoitos e os jogo dentro do café quente para poder comê-los
amolecidos. Mastigo-os devagar até cansar de mim.
.não precisas de nenhuma carta de despedida pra te
justificareS .justificastes por tua casa e por cada objeto nela contido, a mesa
de madeira maçaranduba, a mesma madeira da estante repleta de livros, alguns
deles ainda aguardando tua leitura, guarda-roupas e cabides suspendendo as
roupas, as mesmas de que tu suspendeste o uso, a sapateira que esconde sapatos
pisados e rotos, a cozinha pequena com seus utensílios raramente usados, as
paredes com objetos decorativos, como os relógios e os espelhoS .casa que revela
quem tu éS .a vida e a morte são tua moradA
.enquanto andas pela casa a cumprires os teus
pequenos atos cotidianos, singelos, eu daqui de dentro ofereço o grande sentido
possível para tua vida quietA .em mim todas as tuas ações e intenções ficam
mais profundaS .dentro de mim está o teu legado que ganhou maior significado
pela minha narrativa da tua história não contadA .em mim está o teu contrário
por ti ainda não vividO :te convidO vem pra dentro, e-terno menino, entra no
espelho e joga com alicE seu enigmático jogO
Outro dia,
acordo. Mais um dia-e-mais-outro-e-outro-mais.
Ainda chove.
Nos tempos em
que saía de casa, andava pelas ruas e, vez em quando, as pessoas esbarravam em
mim por simplesmente não me enxergarem. Elas nem me olhavam pra não terem que
me ver. Tornei-me invisível como a perna que falta ao Saci. Mas, insisto com a
coragem de andar em linhas tortas! Tenho ainda minhas duas pernas a recuperar
pra continuar a caminhada, ziguezagueando pra todos os lados, trazendo em mente
a esperança que, talvez naquele lado onde haja a possibilidade do tropeço, encontrarei
o meu destino desejado. A ponta do meu arco-íris preto e branco sem tesouros.
Desisti de
esperar que as coisas sejam definitivas como a felicidade e o amor. Não há
felicidade, tampouco o seu contrário. O bom vem à luz porque o mau sai com sua
sombra. Para haver algo, tem-se que provocar o nada.
Preciso morrer.
Isto se faz necessário a qualquer escritor para que se vendam mais os seus
livros. Meus biógrafos diriam o quanto fui genial, autêntico e, naturalmente,
incompreendido pela crítica e o público de leitores que não leram a minha
curta, porém significativa obra. Só esquecerão, quando referirem-se ao meu nome,
de darem a ele o seu real sentido e significado. Raí Cordeiro, simplesmente.
Propositalmente fictício para que carregasse em si a maior de todas as
contradições da tortuosa condição humana.
Sérgio Janma