"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

sábado, 27 de outubro de 2012

Tempo Exato de Relativa Morte

( Conto para o Clube do Conto, hoje com o tema "23 minutos") 

21 horas e 37 min.

      O toque sonoro de mensagem do SIM 2 do meu celular chama minha mão esquerda pra um mergulho pentadátilo ao interior do bolso da minha bermuda de sete bolsos de onde emergem os utilitários neles guardados que muito improvavelmente de hoje em diante os usarei. Gostaria que você fosse o primeiro a saber que Odionaldo e eu estamos namorando, mensagem que li engolindo cada indigesta letra seca de piedade. O sangue pesado de gelo passou a navegar lento pelas minhas veias. Os fios condutores de frio empalideceu meu corpo por inteiro. Congelei naquele momento que demorava em ser eterno. E como ficamos?! Tantas noites insones de amor no colchão ao chão, matando baratas a cada vez que o cheiro peculiar as denunciava no escuro. 

21 horas e 45 min.

      Fecho a única porta de entrada-e-saída com uma chave de três segredos, sepultando os meus segredos jamais confessados no interior daquele sepulcro que era nosso apartamento depois que você foi embora. Vou-me embora pra nunca mais. Busco encontrar a morte que alivia as dores do ofício de viver. Levo comigo apenas as poucas roupas que essencialmente cobrem o meu corpo e o documento de identidade que facilite o reconhecimento do meu cadáver, já que em vida não fui reconhecido.

21 horas e 51 min.

      Ando inconsciente, zumbi, tonto pela movimentada avenida principal do bairro. Como em uma escura balada noturna, os faróis dos automóveis jogam luzes em meus olhos incapacitados de visão sob aquela lua escandalosa de cheia. Cheio de mim cansa-me guardar em meu corpo essa dor, esse eu tão meu que ninguém quer seu. Chego ao sinal vermelho de minha vida e de todas as avenidas. Ironicamente, lembro que perspectiva em russo quer dizer avenida. E sigo absorto com meu andar sem espelhos retrovisores atrás do nada pra pensar, do vazio da mente que me liberte desta obsessão que me impulsiona pra frente nesta avenida de mão única e sem nenhum retorno que contorne minha dor. Planejo, então, meu inevitável destino derradeiro.

22 horas 

      Sinal fechado. Sincronia da engenharia de trânsito. Esperas mútuas de motoristas e pedestres, sem nelas necessariamente haver sincronias. Espero. Sinto o peso da sentença que diz que o tempo é relativo. Há demora demais para o sinal abrir e os carros com seus muitos cavalos virem com seus olhos grandes, bestiais, sobre mim. Fixo meu olhar pra o escuro dentro dos dois primeiros carros à frente daquela fila inerte de ferros e aços prontos para o arranque veloz. Uma mulher no volante e ao celular, sozinha. Com quem estará a falar? Seja lá com quem e qual seja o assunto, é certo que o tema é sobre suas vidas que continuarão depois dessa noite. Sem que eu percebesse, o outro carro à minha esquerda tem sua seta direita piscante. No seu interior decifro vultos de dois homens jovens de caras alegres, obviedade das noites de sábado. 
      Verde. Vida que te queria verde, meus verdes anos já se foram e agora só resta ir-me, deixar-me cair feito folha seca, ou igual a um fruto podre precipitando-se da árvore da vida. Sinal verde para meu pulo de gato velho na sua sétima vida e última morte. Qual dos dois carros atropelará minha vida de acidentes e selará o meu destino? Num ato que não sinaliza sua intenção, jogo-me de corpo e alma, inteiro, para o centro daquela mal sinalizada pista de asfalto falho por buracos. Fecho meus olhos para não ver e sentir meu fim.
      Ouço após algumas frações de segundos o xingar com palavras chulas, partindo dos dois rapazes que lentamente entravam pela rua à minha esquerda.Filhodaputadoidodocaralhoquémorrerdáumtironacaraseumerda cooooorno!!! Abortei a alegria deles. Frustraram meu calculado suicídio sem ensaios. 

Sérgio Janma - 27/10/2012 -


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Não tô nada bem!


Não tô nada bem!
 (1º Lugar na Categoria Conto do 8º Concurso Literário Mário Quintana do Sintrajufe/RS em âmbito nacional)

     Cheguei sem pressa dez minutos antes do marcado. Sentado na cadeira de tecido, fico entre o cochilo e a vigília. Tô até paciente demais. Até porque SOU UM PACIENTE! Já tô medicado e não ofereço perigo algum. Raiva humana não é transmissível através de salivosas mordidas... creio. Mas quando salivo de raiva, sei não, minha baba pode contaminar. Não agora, aqui nesse consultório, onde espero o tempo passar e, nessa passagem dele por mim, desembarque a psicoterapeuta que aguardo e, espero me olhe como alguém que apenas não tá nada bem. Vai ser difícil convencê-la do meu estado adverso, depois de ter feito uso, receitados, de 2 mg de Rivotril e uma cápsula inteira de 75mg de Venlaxin. Drogas legais que me deixam mais legal, mais domesticado que muito animal que necessita de coleira. Ainda não necessitei dela, mas andei perto de precisar pedi-la emprestado ao vizinho do lado, tão zeloso com seu estimado cãozinho.
                A recepcionista, pensando que eu estaria me importando com o atraso, informa que a “doutora” não demoraria, estava a caminho. Continuo absorto no meu semi-cochilo. O quê dizer à “doutora”? Não sei e nem quero saber. Vai depender do que ela me perguntar e eu quiser revelar. Mas quer saber?! Tô numa boa, de bem com a vida, sob o efeito dessa paz medicamentosa. Então, vou dizer tudo! Tudo mesmo. Minhas vivências dos vinte recentes anos.
                 Ela entra. Surpreendo-me a ponto de despertar da minha morgação. Ela não é simplesmente uma “doutora” qualquer. É UMA MULHER! Eu já sabia que seria atendido por uma psicoterapeuta mulher. Cruel foi não terem adiantado os seus requisitos femininos! Na recepção deveria ter no quadro de avisos o informe de suas características físicas, uma foto seria melhor, pra que ninguém despreparado feito eu, fosse surpreendido no primeiro encontro. O aviso deveria ser assim: Neste santuário, atendimentos serão feitos por Vênus, ou se preferirem, Afrodite. Mas saibam que se trata da mesma pessoa que agrada a gregos e romanos. Ao contrário de uma justificada agitação, me mantive tranquilão, apenas mais esperto. Aquela beleza à minha frente faria qualquer moribundo em visita à ante-sala da morte, querer se agarrar à vida pra apreciar este paraíso feminino.
              Ela vai querer saber das coisas que sinto, penso, experimento, vivencio. A mulher mais interessante que já vi interessada por mim! Vai querer meu bem estar... vai querer me fazer feliz! Não quero mais a cura! Não quero alta nunca mais.
                 A conversa se inicia, após o educado pedido de desculpas pelo atraso. Tenho que falar de mim pra que ela melhor me conheça. Falo com bastante vagar pra também conhecê-la melhor. Falo tudo o que me vem à cabeça pra encompridar a conversa, enquanto observo-a em todos os detalhes. Olhos no olhos, de vez em quando. O que vejo é o todo. Vejo-a toda. Cabelos claros, pele clara, membros proporcionais de uma falsa magreza... e os claros olhos pra ver claramente o que exatamente quer. Quer cuidar de mim.
                Vejo suas mãos. Só consigo ver a tez e perceber que elas estão sobrepostas. Aliança? Não a vejo e pouco importa se há algum ornamento anelar. Os dedos já servem de enfeites àquelas mãos que imagino macias. Isso me basta. Assistir a uma beleza acima do trivial já traz prazer aos meus sentidos fragmentados.
                 Então tá. Semana que vem nos encontramos, mesmo dia e horário. Até lá o lerdo tempo será meu pior inimigo. Tempo que vai me lembrar a todo o instante que NÃO TÔ NADA BEM!
                    Não sou religioso, mas nos dias de nossos encontros, terei 50 minutos pra minha adoração.

Sérgio Janma